quinta-feira, janeiro 22, 2004

(Pré-Teste de Imprensa)

Sem-abrigo – ou uma vida de abandono e solidão



São 0,30 da manhã. Enrolada num cobertor, uma mulher dorme sobre o cimento do passeio, abrigada apenas pelo muro que ladeia o quarteirão. Quando ouve a porta de uma carrinha abrir-se, desperta com movimentos lentos. O som já lhe é familiar. É a equipa da Legião da Boa Vontade (LBV) que chega com sopa, leite e pão. Provavelmente a única refeição quente que tomou ao longo do dia.

O cabelo está molhado. A face, inchada, adquiriu a tez arroxeada característica das queimaduras provocadas pelo frio. Quase sem proferir palavra, a dona Ana aceita de bom grado a sopa que lhe é oferecida e come-a com a mesma paciência que utilizou para se levantar. Quando acaba, pede um cobertor e enrola-se uma vez mais de encontro ao cimento frio.
De nada tem valido a insistência da equipa da LBV em convencê-la a procurar um abrigo mais resguardado ou a dirigir-se aos albergues nocturnos. Mesmo a família, que a procura muitas vezes, não consegue demovê-la do destino que escolheu. É ali que a dona Ana se "sente bem”.
Ali perto, num parque de estacionamento próximo da zona do Marquês, concentram-se mais seis sem abrigo. Um deles, com um longo e sujo cabelo e barbas amareladas pelo tabaco, afirma que já procurou ajuda na AMI, mas lá “não fazem tosquias”. Diz ter sido mal-tratado e que, por isso, não volta a por lá os pés.
Um nevoeiro espesso começa a abater-se sobre a cidade e o frio é cada vez mais intenso. A próxima paragem é na Trindade, uma conhecida zona de prostituição na baixa do Porto. É por ali que dormem o Carlos, na casa dos trinta e a dona Odete, octogenária.
Carlos, que à noite se transforma em Carla e se prostitui nas imediações, decidiu "adoptar" a velha senhora de ar frágil e fazer dela a sua protegida. Há oito anos, quando a conheceu na rua, a dona Odete esta estava em risco de vida. "Estava podre. Tinha um ovário em decomposição e um quisto na bexiga", explica Carlos. Não fosse a sua persistência junto dos médicos do Santo António para a colocar à frente de uma longa lista de espera e a dona Odete teria concerteza morrido.
Muitos dos sem abrigo da cidade vão-se valendo dos Albergues Nocturnos do Porto, último refúgio para quem não consegue habituar-se aos rigores de uma caixa de cartão ou de um patamar de entrada de um prédio. Um sítio onde é possível tomar um banho quente, comer uma refeição, trocar de roupa e dormir num colchão.
"É mais fácil chegar-se a uma situação destas do que à partida se possa pensar", afirma a socióloga e técnica de inserção da Associação dos Albergues Nocturnos do Porto - uma instituição não governamental sem fins lucrativos. As pessoas chegam a esta situação, na sua grande maioria por problemas familiares - nomeadamente o divórcio -, aos quais costumam estar associados o consumo excessivo ou a dependência de drogas e álcool. “O Rui Rio está empenada na resolução deste grave problema social, mas os apoios são escassos”. A socióloga Ana Machado adianta ainda que nem o próprio presidente pode fazer mais na ajuda aos sem-abrigo. “Cabe ao Governo fornecer dinheiro às associações e organizações não-governamentais, que fazem aquilo que o próprio Governo deveria fazer! Mas a maior preocupação é o Euro 2004 e os seus estádios!”

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